Como aplicar os conceitos de variabilidade glicêmica na prática clínica?
OS MÉTODOS TRADICIONAIS DE AVALIAÇÃO DO CONTROLE GLICÊMICO
Tradicionalmente, e na grande maioria dos casos, o controle glicêmico é avaliado por apenas dois parâmetros: a hemoglobina glicada (A1C) e a glicemia medida em laboratório ou por meio de monitores que permitem a automonitorização glicêmica domiciliar. A A1C é considerada como o padrão ouro para a avaliação do controle glicêmico de longo prazo, uma vez que reflete a média das glicemias ocorridas nos últimos três a quatro meses anteriores ao teste. Os níveis de A1C são diretamente proporcionais aos níveis de glicemia: quanto maior a concentração de glicose sanguínea, maior será a ligação irreversível entre as moléculas de glicose e a molécula de hemoglobina, como mostra a figura 1.
Por outro lado, os dados de glicemia obtidos através da correta utilização da automonitorização domiciliar fornecem informações importantes sobre o controle glicêmico e, juntamente com os resultados da A1C, proporcionam informações valiosas para a avaliação do controle glicêmico e para a orientação da conduta terapêutica. A tabela 1 mostra os valores de correlação entre os níveis de A1C e os respectivos valores correspondentes de glicemia média estimada.
Tabela 1 – Valores de Correspondência entre Níveis de A1C e de Glicemia Média Estimada
Apesar de sua grande utilidade clínica, o teste de A1C apresenta algumas limitações importantes, tais como: é um parâmetro acessório de avaliação do controle glicêmico, reflete apenas os valores médios dos últimos três a quatro meses, não fornece nenhuma informação sobre o controle glicêmico atual ou recente e não reflete a variabilidade dos valores glicêmicos durante um determinado período. Além disso, no Brasil ainda existem muitos lugares onde a sua determinação é feita por métodos não validados.
Em resumo, a avaliação do controle glicêmico hoje em dia deve incluir novos conceitos além da A1C e dos testes isolados de glicemia. Os principais novos parâmetros na avaliação do controle glicêmico são a variabilidade glicêmica e a utilização do novo conceito de glicemia média estimada, que tenderá a substituir a avaliação isolada dos níveis glicêmicos individuais.
CONCEITO E IMPORTÂNCIA CLÍNICA DA VARIABILIDADE GLICÊMICA
Nos últimos anos, vários estudos clínicos e experimentais têm apontado para a importância da inclusão da variabilidade glicêmica no conjunto de parâmetros destinados à análise global do controle glicêmico. Embora ainda não seja um conceito unanimemente aceito pela comunidade científica internacional, a análise da variabilidade glicêmica vem ganhando uma aceitação cada vez maior na prática clínica, em função da crescente evidência no sentido de comprovar o impacto negativo das variações extremas do controle glicêmico sobre o risco cardiovascular. Um estudo publicado em 2008 demonstrou que o aumento da variabilidade dos valores de glicemia promove um aumento do estresse oxidativo e do comprometimento da disfunção endotelial, levando a um aumento do risco de complicações cardiovasculares no paciente diabético, como mostra a figura 2.
CORRELAÇÕES ENTRE VARIABILIDADE GLICÊMICA E NÍVEIS DE A1C
Variabilidade glicêmica aumentada pode impactar diretamente os níveis de A1C, prejudicando consideravelmente a interpretação correta dos testes de A1C. Explicando melhor: vamos imaginar dois pacientes com níveis equivalentes de A1C, da ordem de 6,5%. Pelos conceitos tradicionais, ambos esses pacientes seriam considerados como apresentando um controle glicêmico “normal”, tendo em vista que, numericamente, esse valor está abaixo da meta máxima recomendada de A1C ≤ 7,0%. Entretanto, apesar de ambos os pacientes apresentarem o mesmo valor numérico da A1C, cada um deles pode apresentar uma condição clínica totalmente peculiar e distinta entre si. A figura 3 mostra o perfil glicêmico de um dia padrão, resultante da realização de seis testes de glicemia, num período de 24 horas.
Figura 3 – Perfis glicêmicos distintos entre dois pacientes que apresentam o mesmo nível de A1C.
Nessa representação gráfica do perfil glicêmico, o paciente 1 apresenta um nível de A1C de 6,5%, o qual resulta de pequenas variações da glicemia no período de 24 horas. Por outro lado, o paciente 2, embora também apresente uma A1C de 6,5%, conseguiu atingir essa meta em função de variações intensas dos valores glicêmicos, com alternância de picos de hiperglicemia com vales de hipoglicemia importante. Nesse caso, na “média”, o valor da A1C do paciente 2 resulta matematicamente de valores considerados clinicamente alterados, ao passo que o paciente 1 é o único que apresenta um nível de A1C efetivamente decorrente de uma variabilidade normal e quase fisiológica dos valores glicêmicos. A partir desse exemplo, a mensagem principal é a de se ter cautela na interpretação isolada dos níveis de A1C sem levar em consideração o perfil da variabilidade glicêmica durante o período considerado.
Em função desse mecanismo, a possibilidade de interpretação equivocada dos valores de A1C é maior quando as taxas de A1C se situarem em valores “normais” ou “quase normais”, variando entre 6,0% e 7,5% ou 8,0%. Acima desses valores, o nível de A1C efetivamente refletirá a glicemia média ocorrida durante o período considerado.
Na prática, o meio mais simples de se avaliar a variabilidade glicêmica é a utilização de softwares de análise de perfil glicêmico, os quais são disponibilizados aos médicos pelos diferentes fabricantes dos monitores de glicemia.
Em termos numéricos, a meta máxima para a variabilidade glicêmica deve corresponder a 1/3 da meta máxima para a glicemia média do período. Na prática clínica, a meta máxima para a glicemia média do período deve ser da ordem de 150 mg/dL, o que equivale a uma A1C de aproximadamente 6,86%. Portanto, a meta máxima sugerida para a variabilidade glicêmica é de 50 mg/dL.
Em resumo: atualmente, o controle glicêmico deve ser avaliado não apenas com a utilização dos parâmetros tradicionais, como a hemoglobina glicada e os testes isolados de glicemia. Com o objetivo de aprimorar a qualidade da informação sobre o estado do controle glicêmico, os novos parâmetros como variabilidade glicêmica e glicemia média estimada devem ser incorporados à rotina diária de avaliação global do perfil glicêmico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Pimazoni Netto A, Andriolo A, Fraige Filho F, et. al. Atualização sobre hemoglobina glicada (HbA1C) para avaliação do controle glicêmico e para o diagnóstico do diabetes: aspectos clínicos e laboratoriais. J Bras Patol Med Lab 45(1):31-48, 2009. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/jbpml/v45n1/07.pdf. Acesso em 08 de fevereiro de 2011.
- Nathan DM et. al. Translating the A1C assay into estimated average glucose values. Diabetes Care 31:1-6, 2008.
- Pimazoni-Netto A. Avaliação do Controle Glicêmico. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 210-218, 2009.
- Ceriello A. et al. Oscillating glucose is more deleterious to endothelial function and oxidative stress than mean glucose in normal and type 2 diabetic patients. Diabetes 57:1349-1354, 2008.
CONTEÚDOS EDITORIAIS ADICIONAIS
Objetivo do Aprendizado
Atualização de conhecimentos sobre novos parâmetros de avaliação do controle glicêmico, com ênfase na discussão sobre o papel da variabilidade glicêmica como um dos novos parâmetros a serem utilizados rotineiramente na avaliação do perfil glicêmico.
Pontos chave
O teste de hemoglobina glicada é considerado como o padrão ouro para a avaliação do controle glicêmico de longo prazo. Entretanto, apresenta algumas limitações importantes que interferem na interpretação dos resultados.
Os parâmetros tradicionais de avaliação do controle glicêmico, como o teste de A1C e os testes isolados de glicemia, não são suficientes para uma avaliação mais global e confiável do controle glicêmico.
A variabilidade glicêmica e a glicemia média do período são os novos parâmetros que deverão ser incluídos na rotina da avaliação do controle glicêmico.
A variabilidade glicêmica é um fator de risco independente para complicações cardiovasculares do diabetes, sendo inclusive mais deletério do que os níveis elevados de glicemia.
QUESTÕES DE MÚLTIPLA ESCOLHA
- Em relação ao teste de A1C é correto afirmar que:
a) É o padrão ouro para a avaliação do controle glicêmico de longo prazo.
b) Apresenta, entretanto, algumas limitações que interferem na interpretação dos resultados obtidos.
c) Não reflete o estado atual do controle glicêmico e nem o nível de variabilidade glicêmica observado no período.
d) Todas as alternativas acima são verdadeiras. - Para uma meta de A1C = 7,0%, qual o valor correspondente da glicemia média estimada?
a) 100 mg/dL.
b) 154 mg/dL.
c) 175 mg/dL.
d) 200 mg/dL. - Em relação à variabilidade glicêmica, é correto afirmar que:
a) Quanto maior a variabilidade glicêmica, maior o estresse oxidativo.
b) Quanto maior a variabilidade glicêmica, maior a disfunção endotelial.
c) Ambas as afirmações acima estão corretas.
d) Ambas as afirmações acima estão incorretas. - Na presença de uma alta variabilidade glicêmica, qual o impacto sobre os níveis de A1C?
a) Os níveis de A1C estão sempre elevados.
b) Os níveis de A1C costumam estar “normalizados”.
c) Os níveis de A1C não se alteram.
d) Nenhuma das alternativas acima está correta. - Para um limite máximo de glicemia média estimada de 150 mg/dL, qual seria a meta máxima desejável para a variabilidade glicêmica?
a) 30 mg/dL.
b) 50 mg/dL.
c) 70 mg/dL.
d) 90 mg/dL.